Participo de um grupo fechado de whatsapp de velejadores de Ubatuba, a função do grupo é compartilhar experiências, contar umas piadas e se sentir mais próximo do mar virtualmente, e neste ano um fato mexeu muito com o grupo, um dos integrantes capotou o seu veleiro, após o acidente ele escreveu um belíssimo texto contando sobre o ocorrido, depois de muita negociação ele permitiu que eu publicasse o texto aqui, claro que para proteger o comandante e o barco os nomes foram trocados ou omitidos.
Não costumo fazer censura aos comentários, mas neste caso em particular os comentários serão filtrados e se necessário excluídos.
Não quero aqui fazer apologia a irresponsabilidade e gostaria de deixar claro que uma situação dessa só ocorre por graves erros e desrespeito total aos fundamentos da navegação sendo muito raras e pontuais, o comandante do barco na ocasião ignorou os vários avisos de mau tempo emitidos pela marinha e o conselho de outros velejadores.
Aos que estão começando e descobrindo o munda da vela, procurem sempre os comandantes e instrutores de vela que sejam responsáveis e comprovadamente bons, velejar é mais seguro do que passar a vida em frente a televisão se você segue as regras e normas de segurança da navegação, evitem as lendas e lobos do mar, lenda não existe e lugar de lobo não é no mar.
Também gostaria de deixar claro que não fui eu quem capotou o barco, eu nem sequer estava lá e o barco não foi o Vivre, como eu disse anteriormente essa experiência foi vivida por um amigo cujo nome prefiro preservar.
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RELATO DE UMA DESVENTURA NO MAR
Resolvi escrever estas linhas, para tentar transcrever em detalhes o ocorrido com o Veleiro
NOME ATUAL (não colocarei os nomes reais neste post) ou NOVO NOME, nome que daria quando passasse o mesmo para o meu nome.
O significado do NOVO NOME os senhores não irão encontrar no dicionário da língua portuguesa, no dicionário argentino encontrarão que o NOVO NOME é uma gíria para Tolo, o que talvez se encaixe bem agora... Mas o verdadeiro significado do NOVO NOME em meu dicionário da vida, é que foram as primeiras palavras de meu único filho, quando ainda aprendia a falar, quando o mesmo queria nos dizer "Eu te amo".
E como não se apaixonar pelo mar? Com suas águas ricas em vida, diversidade, paz, e poder. O
que mais me chamou a atenção no mar quando criança era o som das ondas arrebentando nas
pedras, um som grave e profundo, e mais velho ouvi o mesmo som em minha visita às
cataratas do Iguaçu, eu acreditava que se Deus falasse conosco seria com uma voz poderosa
como aquela, seria para mim, literalmente a voz de Deus.
Meu carinho com os veleiros começou quando conheci uma pessoa apaixonada por vela, um
cliente, que seria presenteado com uma caricatura junto ao seu veleiro, a paixão em suas
palavras foi algo tão contagiante, algo muito bom para ser vivido em meio a esta selva de
pedras poluídas que vivemos, era um refúgio perfeito, era um lugar perfeito para ver meu filho
crescer com saúde, após tantas alergias que ele tem desde que nasceu. Comecei a pesquisar
sobre este mundo desconhecido para mim, eu nunca havia entrado em um veleiro antes, até
conhecer o Blog do meu amigo Walnei em pesquisas no Google. Marcamos uma velejada em
Ubatuba, e passamos um dia mágico, com mar calmo, vento fraco na ida, um pouco melhor na volta, aquários naturais na PRAIA DO SUL da Ilha Anchieta.
Meu gosto pela vela só crescia, meu filho adorou brincar no veleiro, ele ama praia. Aliado a
uma atitude sustentável (diferente de uma lancha) e tanta energia em cima de algo tão
prazeroso me trouxe a oportunidade de comprar meu próprio barco, mesmo com todas as
péssimas recomendações de minha esposa, que morre de medo do mar, eu a contrariei e
financiei a compra do barco. Uma barganha, segundo alguns entendidos no assunto, um
23 pés em bom estado, razoavelmente equipado, uma pinturinha e estaria zero Km. Mas eu não fecharia o negócio sem saber como traria o mesmo para Ubatuba, pesquisei transportadoras e pedi indicações, e o nome de um velho lobo do mar
apareceu, um capitão experiente com mais de 30 anos de vela, travessias transoceânicas, filho
de um conhecido construtor de veleiros, uma lenda. Que talvez, por sua enorme experiência perdeu algo vital à sobrevivência humana, o medo.
Embarcamos as 11h00, saindo do Iate Clube em que o veleiro se encontrava, na Ilha do
Governador-RJ, com rumo à Ubatuba, com previsão de ressaca emitido pela Marinha com ondas de 2,5 metros, um erro para muitos dos senhores, mas estar com uma lenda me trouxe confiança e poder viver uma aventura intensa seria para poucos e eu quis fazer parte disso.
Mas este desejo durou pouco, pois comecei a marear já próximo à saída da Baia de Guanabara,
fui persistente, tomei remédio e estava me aguentando, eu tinha que resistir a isso, mas o
capitão percebeu, e disse que se eu estava enjoando com aquele balanço, no mar alto o
balanço seria muito mais intenso e não seria uma boa continuarmos. Meu capitão encarou
aquilo numa boa, aparentemente, até fez um macarrãozinho para mim para ver se tendo algo
no estômago meu corpo reagiria melhor, mas não adiantou, e dei o braço a torcer, minha
aventura acabaria ali, e eu teria que me acostumar navegando apenas em águas calmas e
protegidas até um dia me aventurar em uma travessia destas. Fora minha primeira lição, saber
a hora de jogar a toalha e não ter vergonha de ser fraco, já tinha me decidido, ele iria fazer a
travessia sozinho ou com outro marinheiro mais experiente em uma janela mais adequada.
Perfeito, a melhor decisão havia sido tomada, fizemos meia volta, só que a minha paralisia, um
pouco pelo marear e um pouco pelo pânico de ondas gigantes a nossa volta, me travou e dei
conta que estávamos em um 23 pés e aquele mar grosso era para gente grande. E não sei se
isso foi crucial para o que viria a seguir, mas a nossa vela buja não estava aberta totalmente,
pois alguém precisaria assumir o leme para que ele passasse a vela a bombordo e ela se
enchesse completamente, e eu não busquei forças para tanto, pois seria apenas se afastar
daquele mar grosso que as águas voltariam a se acamar e voltaríamos em segurança, acredito
que este tenha sido o pensamento do capitão também. Mas de repente, o mar gritou o seu
direito, e não se conformou que chegássemos até ali sem levar nada em troca, e nos regalou
com uma onda de uns 15 metros, fazendo nossa popa subir feito numa montanha russa.
Estávamos passando por um estreitamento com águas profundas, mas devido às rochas dos
dois lados, o mar ficou forte naquele ponto, e uma onda que normalmente seria apenas uma
grande marola, quebrou sob nossa embarcação, e nos conduziu em um surfe fatal, nosso bico
da proa até tentou resistir, mas bem lentamente foi penetrando na onda sob nós até que o
estanque que recebemos, por uma superfície não preparada para deslizar, nos fez capotar e eu
que estava sem colete e sentado no cockpit só senti o tranco e a água nos engolindo, senti
também um abraço dos cabos de aço do meu estaiamento, fiquei preso entre eles e terminei o
giro sentado na parte de cima do barco próximo a gaiuta, meu capitão fora lançado ao mar e
rapidamente nadou e se agarrou ao barco, eu pedi sua ajuda para me desvencilhar dos cabos,
me senti fraco, não sei se pelo pânico ou pela maresia, está já não me incomodava mais, a
adrenalina já havia lhe dado um bom remédio.
Me senti como uma criança indefesa, ainda mais quando meu capitão se mostrou desesperado
em recuperar o mastro da água, pois ele não permitiria uma manobra de fuga, pois estávamos
sendo jogados para um paredão de rochas com ondas fortíssimas, tirei forças da sobrevivência
e conseguimos retirar o mastro da água e o amarramos no barco, mas nosso motor não
funcionaria, pois o suporte do mesmo havia ficado retorcido, ficamos a deriva.
Os momentos de angústia que se sucederam foram intensos, pois não tínhamos comunicação,
pois devido ao capotamento e a entrada de água no barco, nossas baterias estavam
inoperantes, por sorte, meu celular era resistente a água e tentei ligar para minha esposa, vi a
chamada completando mas não ouvia nada, a água havia prejudicado os auto-falantes do
aparelho, então eu pedi socorro sem saber se seria ouvido, também liguei para outros
números, sem saber se teríamos sucesso. Quando um navio mercante se aproximou por nosso
bombordo fiz sinais com as mãos, mas não obtive nenhuma resposta, ele passou a uns 200
metros de nós. Pedi a Deus que nos salvasse e que eu nunca mais pisaria em um veleiro se ele
me atendesse, foi neste momento que ao longe vimos o único que perceberia o risco que
estávamos correndo, um lindo veleiro com suas velas infladas, a umas 2 milhas de nós, prumou em nossa direção, e logo depois avistamos duas lanchas do corpo de bombeiros do Batalhão de Botafogo, que bravamente se aproximou e lançamos cabos para que nos rebocassem e nos tirassem da garganta daquele gigante.
Eu não conseguia chorar, nem mesmo gritar de indignação pelo prejuízo material que sofri, e
por ter quase perdido a vida, e de imaginar que eu poderia estar com minha família dentro do
barco... tantas coisas..., este sentido só se restaurou no momento em que coloquei os pés no
chão firme e pude desabar como um bebezinho ávido pelo colo da mãe.
Eu ouvi a bronca justa dos bombeiros, nos lembrando sobre os avisos da marinha, observei o
relado do comandante que nos mostrou uma embarcação rachada ao meio, que a pouco
tempo havia sido engolida no mesmo local que a gente com 4 tripulantes, que por Deus e pelo
bravo trabalho dos salva guardas marítimos, também saíram ilesos, eu abracei o tenente que
nos resgatou em segurança, tiramos fotos, ficamos amigos, até nos deram um café quentinho... Mas eu só pensava em ir para casa e abraçar o meu filho e a minha esposa durona, que não derrubou uma única lágrima, apenas me chicoteando com suas recomendações não atendidas. Viajei 7 horas molhado, sem nenhuma peça de roupa seca na mala, com um homem obeso dormindo ao lado que mal cabia em sua poltrona, mas aquilo para mim era o maior conforto que eu poderia ter, eu estava vivo e a caminho de casa. Cheguei em casa a 01h30 da manhã e dormi a noite toda como uma criança.
Eu nunca havia navegado em mar aberto, e não consegui ouvir a voz de Deus naquele
momento, mas aqueles cabos me abraçando e não permitindo que eu caísse na água, para mim me pareceram as mãos do criador, pois eu não sou um exímio nadador, e enfraquecido
pela maresia e pelo pânico, acho que de pouco adiantaria nadar em meio a águas ferozes. Me
sinto como um filho que fez travessura, apanhou e foi dormir quente, a mãe natureza é
mesmo uma mulher, que ao mesmo tempo que nos dá um prazer sem igual nos dá uma surra
para nos lembrar qual é o nosso lugar.
Ainda não sei se vou completar o sonho de ser velejador, tudo que eu gosto já me deixou
frente a frente com a morte, moto, agora o veleiro. Eu só sei que a única diferença entre a vida
chata da cidade de pedras poluídas e uma vida de aventuras é a velocidade que você pode ir
embora, uma vai te levar aos poucos em tons cinzentos e a outra, se não tomar os devidos
cuidados, poderá te levar em tons vibrantes de uma hora para outra. Mas o mais importante
de tudo é como preencheremos o espaço entre vida e morte, se as duas são certas, é o
durante que está ao nosso alcance. É como escolhermos viver a nossa vida.
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Aos companheiros do Itagua, não façam nada impulsivo e aventureiro, nem mesmo com o melhor dos
comandantes, pois pode ser a hora dele e você estará junto. A menos que tenham uma bateria seca na
reserva, um rádio walk talk dentro de um saco estanque, um celular no mesmo saco, até mesmo um
motor reserva com boa manutenção e guardado a seco, ah, e a gasolina, por mais que possa dar um
cheiro ruim, deixe guardada na cabine, pois a nossa foi para o mar, ainda bem que estava tampada.
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